Nesta madrugada, que se faz início da sexta-feira da Paixão, despertei do sono para refletir sobre as vias do Calvário.
E, numa súbita reverência, duas mulheres saltaram-me aos olhos e me coloquei a reverenciar e refletir então, não a indiscutível significância da Paixão de Cristo, mas, o Calvário de duas Marias: Maria, mãe de Jesus e Maria Madalena.
Imaginar a dor de uma mulher, designada pela espiritualidade divina para ser a mãe do Salvador do mundo, diante das desumanas ações que geraram a Via Crucis, a dor de ver seu filho encaminhar-se para a morte, já morrendo aos poucos, a certeza de que esta profecia seria cumprida, a doação de compreender que aquele propósito se servia, diante de Deus, na visão nazarena, não ao ato em si e sua justificativa pela acusação, mas, a libertação de gerações que se estenderiam a mais de 2000 anos, seria quase impossível aos olhos de uma jovem mãe, que teria que abandonar seu filho após 33 anos de convívio já compartilhado com a vida ordinária. Tão cedo, tão cruel. Maria se entrega ao seu próprio Calvário e missão, aquela que a faria tornar-se Mãe com contrato irrevogável e cláusulas incondicionais, da humanidade inteira. A mãe de filhos e filhas e de milhares e milhares de mães que sofreriam em seqüência, a seu tempo, em sua condição contemporânea seus próprios calvários pessoais. Estas mães que, por razões diversas, perderiam e perdem até hoje, noites de sono em orações ou desespero pelos filhos que estão, se foram ou vão partindo aos poucos, por razões diversas. A Grande Mãe arrastou seu manto junto ao filho, em sofrimento indescritível. A Senhora das Dores que tomaria as dores do mundo, ouviu do próprio filho a mensagem divina de que aquilo deveria ser vivido, por algo maior que tudo e todos os envolvidos pudessem compreender. A visão de que a própria vida é milagre e a existência transcende compreensão terrena e precisa ser vivida na íntegra dignidade da entrega incondicional é, então, cravada na figura de Maria, mãe de Jesus que doa seu filho e ganha a humanidade inteira, como legado maternal, em contraditória dicotomia que lhe traz dor e responsabilidade. Maria de Nazaré entrega seu filho e a si, em sua servidão maior e expande seu manto em proporções universais aos que buscarem a Santa Mãe.
Ao seu lado, outra Maria segue seu próprio Calvário. É Maria Madalena, aquela que nas escrituras conheceriam como a pecadora, com margens inúmeras às interpretações várias das gerações futuras de acordo com seu conhecimento do pecado que o feminino pode cumprir, diante das breves citações nos evangelhos que a tradição divulgaria universalmente. A jovem Madalena, injustiçada por histórias de poder, política de seu tempo e até documentos remanescentes que a biografassem com clara interpretação, foi aprendiz e companheira de Maria por longa data e cumpriu sua devoção, como discípula incansável de seu Mestre Jesus, que revelaria a ela sua primeira aparição após ressurgir. Já nasceu consagrada, mas, expressou sua fé, sob o rótulo de conversão, sem questionamentos, com reverência e entrega humana à dor. Maria mãe, a mulher divina e divinizada universalmente ladeava, Maria Madalena, descrita humana, mulher de vida vivida, convertida e marginalizada. Este paradoxo parece aos olhos de uma compreensão espiritual, bem explicado: se por um lado contamos com a irrevogável condição da pureza imaculada da grande Mãe, nós, mulheres (e, todos os demais humanos, atenção!) passaríamos a ter como outro santo baluarte uma mulher humanizada sob os aspectos mais ordinários possíveis, não por acaso. A força do feminino humano de Madalena, poderia vir a relacionar-se diretamente com o feminino presente em todos nós.
Portanto, meu relato traz na presença das duas Marias, a possibilidade de vislumbrarmos a força do Sagrado Feminino, intrínseca nestes dois ícones históricos, na eterna dualidade que permeia a vida em nós: o divino e o profano. Profano aqui, tido como humanizado, aparentemente contrário ao imaculado, mas, que alcançam unicidade, quando nos permitimos nos referir e evocar as bênçãos da completude do ser.
Minha profunda reverência e emoção ao tentar, 2013 anos depois, imaginar a dor destas mulheres diante na Via Crucis, diante do que se tornaria Calvário próprio, além da compreensão humana, que o tempo faria transcender e eternizar.
Que, realmente, possamos eternizá-las em nossos corações, com respeito e compreensão possíveis e nos lançar, sob as bênçãos destas sacras personagens da história da humanidade, ao aprendizado e ao infinito legado de bênçãos que seus mantos, o azul e o vermelho, já estenderam sobre nós.
A figura humanizada do Cristo e sua dor por nós, soma-se ao feminino destas duas mulheres, em clara completude masculino+feminino, integração exata de equilíbrio possível e força incondicional impressas em cada um de nós.
Que venha, pois, o equilíbrio que traz a entrega, a compreensão e a diária devoção à real missão e cada um de nós. Com amor, muito amor. Amém.
(Márcia Francisco, sexta-feira, 29 de março de 2013, 9h10)
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